Poucos artistas ousaram tanto quanto Doménikos Theotokópoulos — o mundo o conhece apenas como El Greco. Nascido em Creta em 1541, moldado em Veneza e consagrado na Espanha, ele foi um estrangeiro em todos os lugares, mas dono de uma visão que ultrapassou séculos. Suas figuras longilíneas, rostos aflitos e cores incandescentes pareciam não vir da terra, mas de um reino onde a fé e a febre se confundem.
Em plena era da Contrarreforma, quando a pintura era chamada a servir à religião, El Greco fez dela um êxtase. Suas obras — como O Enterro do Conde de Orgaz e A Visão de São João — não apenas ilustram o sagrado: elas o encarnam. As chamas de amarelo, verde e azul que se entrelaçam em seus quadros são o retrato da alma humana em combustão.
Rejeitado por muitos de seus contemporâneos, considerado “extravagante” demais para o realismo espanhol, El Greco foi redescoberto séculos depois como um precursor dos expressionistas. Picasso o reverenciou, os surrealistas o estudaram, e a arte moderna o adotou como um ancestral rebelde.
Hoje, ao olhar suas figuras distorcidas ascendendo entre nuvens de luz, é impossível não sentir que El Greco pintou não o que via, mas o que ardia dentro dele. Ele não retratou santos — ele retratou o próprio milagre da visão.
A outra face de El Greco era antipática, Chegou a ser enxotado de Roma, onde triunfava a pompa cardinalícia, e ficou tido como pintor maldito durante quase 300 anos. Zombou de Michelangelo. O artista enfrentou até mesmo a inquisição espanhola, tudo porque não colocou uma coroa de espinhos na cabeça de Jesus. Mas ele renegou a intervenção em sua obra: “Dizia que os inquisidores só poderiam dar palpites se pagassem por ela”.
El Greco fez muito dinheiro com suas obras, mas morreu na miséria em 1614. “Aqui jaz o grego de quem a natureza aprendeu a arte”. O epitáfio não poderia ser mais apropriado para descrever a vida de alguém que se achava acima do bem e do mal.
Fontes: Museu do Prado, The National Gallery, BBC, Smithsoniam Museum, Aventuras na História, The Collector